Viaje sem medo com Steve Zissou
Caros leitores,
Após o referendo, vamos falar sobre coisas que interessam sobre a vida, tais como relações humanas, e vou começar comentando um filme q trata da relação pai excêntrico x filho não conhecido. E um cineasta que tem tratado bem deste tema é Wes Anderson, um diretor da nova safra intimista que têm nascido em Hollywood e tem feito filmes muito bons (um deles, Os Excêntricos Tenenbauns, comédia ácida da melhor qualidade).
A VIDA MARINHA COM STEVE ZISSOU - Um novo tipo de comédia
Vendo-se A Vida Marinha com Steve Zissou, apenas fica confirmado que Wes Anderson sabe alguma coisa que nenhum de nós sabe: num tempo em que os mais idiossincráticos realizadores americanos foram forçados a uma aposentadoria compulsória ou a filmarem com apoio principalmente externo, Wes Anderson continua levando adiante dentro dos grandes estúdios seu projeto absolutamente pessoal de cinema, sem ter precisado para isso achar uma fórmula que atraia grandes retornos de público (caso de Martin Scorsese em certa medida, ou mais ainda de M. Night Shyamalan), nem nenhum tipo de “conciliação”. A Vida Marinha é, possivelmente, o mais radical exemplo de tudo que não se esperava estar vendo um estúdio produzir hoje: um filme “de galera”, antes de qualquer coisa (sensação lindamente expressa na ação final do filme, com a caminhada até o barco), e um filme do mais puro cinema – onde a narrativa ficcional entra mais como uma referência distante do que como um fim a alcançar.
É inegável que, no fundo (e como alguns dos melhores diretores), Anderson está constantemente refazendo o mesmo filme: um onde um grupo de pessoas vive a partir de regras muito específicas de comportamento – regras estas não semelhantes nem às que regem as nossas vidas, nem às que regem o que se chama de “naturalismo cinematográfico” clássico –, à parte do resto do mundo (numa ilha) mesmo que por opção própria (“nós somos um bando de marginais”, diz Zissou a Ned). Mundo este no qual os valores realmente importantes são os de viver a vida abraçando todas as suas empreitadas, sejam elas bem ou mal sucedidas. Neste sentido, é fácil ver no Steve Zissou de Bill Murray a continuação do patriarca dos Tenenbaums que Gene Hackman encarnou no filme anterior de Anderson: absolutamente incapaz de se relacionar com as pessoas a partir de uma perspectiva que não seja a sua própria, sendo esta muitas vezes francamente desagradável, mas restando ele sempre absolutamente carismático. Assim como em Tenenbaums, de novo a questão principal dos relacionamentos gira na questão de aceitar o pai (ou, aqui, o filho) como ele é: em olhar além dos traumas que o seu comportamento possa ter causado (“me desculpe se eu te abandonei, não vai acontecer de novo”), e conseguir abraçar cada um na sua falibilidade.
É aí que Bill Murray ajuda muito a levar o personagem de Hackman (ou o que ele mesmo interpretava em Rushmore) adiante: por seu estilo tão peculiar de atuação, onde a comédia surge naturalmente, mas sem jamais emprestar a seu personagem nenhuma consciência de sua comicidade absurda. Na verdade, Murray só é engraçado por poder fazer tudo que faz em cena com a expressão mais distanciada (blasé, diriam alguns), seja na sua dancinha vestido de mergulhador, seja na fantástica cena no balão, seja no salvamento ensandecido do refém dos piratas.Neste ponto é importante pensar mesmo no que é a atuação, segundo Anderson. Porque se Murray é um ponto central do seu cinema, onde intenções de diretores se encontram perfeitamente com estilo e persona do ator, também é preciso ver como, em todas as atuações ao redor dele, Anderson consegue arrancar o mesmo equilíbrio tão delicado entre a renegação mesmo da “atuação” segundo o naturalismo, incorporando a todos os atores e sua forma de enunciar diálogos ou postar-se em cena esta mesmo distanciamento tão peculiar e preciso, que não cria frieza nenhuma mesmo ao negar tudo a que o espectador mais se acostumou a entender como “emotividade”.
Assim é que precisa-se fazer destaque aqui para figuras como Willem Dafoe, Noah Taylor ou Cate Blanchett, que conseguem se misturar a um grupo de atores já acostumados aos andersonismos (Anjelica Huston ou, claro, Owen Wilson), assim como a figuras absoluta e unicamente icônicas (como é o caso de Seu Jorge ou da script-girl) – todos a serviço de um texto que une sofisticação de humor e “bobeira completa” como mais ninguém sabe escrever hoje em Hollywood.É essencial entender, portanto, que este distanciamento (que Murray encarna melhor que ninguém) não equivale a uma não-atuação, muito pelo contrário – há nuances extremos no personagem que ele constrói, na briga que ele empreende desde o início com a consciência de sua própria decadência (onde é especialmente tocante a cena em que ele desaba na escada no meio do salvamento e reflete sobre sua própria falibilidade) e na dificuldade de se relacionar com a idéia de ser pai, ou nas relações que mantém com a mulher ou o grande rival (um Jeff Goldblum sem nenhum limite de histrionismo). Cada olhar de Murray carrega o peso deste personagem, tão eternamente infantil quanto completamente envelhecido – e, neste ponto, a sua ação final no filme é absolutamente essencial: a de pegar a criança nos ombros, e ao fazê-lo reinventar-se e garantir a continuidade de sua história.
O filme terminar com a criança como centro da ação é importantíssimo também porque o cinema de Anderson é eminentemente infantil no seu aspecto radicalmente lúdico. Se isso sempre esteve presente em seus filmes, A Vida Marinha, sem dúvida, representa o seu ápice: o uso dos efeitos de computador para criar tudo menos naturalismo na animação das criaturas marinhas, a encenação em clima de “brincadeira de fundo de quintal” tanto da tomada do navio pelos piratas quanto do resgate posterior, a brincadeira de “casinha de bonecas” (à la Jerry Lewis, é preciso lembrar) na exposição da arquitetura do navio, em suma, tudo no filme pode ser visto como uma ode ao fazer cinema como exercício lúdico – e a expectativa de que o espectador aposte no mesmo sentimento ao assisti-lo. Em A Vida Marinha, porém, esta profissão de fé no poder de fascínio do cinema vem exacerbada: é por isso que se acredita que filmar um cantor brasileiro cantando ao violão músicas de David Bowie em português possui força própria para além de qualquer outra motivação para além de estarmos assistindo a isso; ou o mesmo valendo ao vermos Bill Murray subindo ao ponto máximo da proa de um navio (a posição “Leonardo DiCaprio em Titanic”, digamos), para um momento de suspensão do tempo da ação do filme ao fumar maconha. Tudo isso é cinema puro, sentimento causado por imagem e sons, nada mais. Por isso é que também é essencial entender o filme todo a partir do surgimento final do tubarão-jaguar: não como o atingir do clímax de uma narrativa, mas a própria negação desta pelo encantamento desta figura, representação-absoluta do sonho infantil que move aquelas personagens (“essa é a aventura!”, é a fala final do filme), que se unem então, e sem mais amarras, em torno do Capitão Zissou.
É impossível não mencionar também o fato de que Anderson deixa ainda mais claro este teor de “profissão de fé cinematográfica” que este filme tem, ao fazer com que seus personagens não sejam apenas aventureiros; e sim aventureiros-cineastas. Diversão ampliada ainda aos festivais de cinema e seus debates com a platéia (uma das grandes trocas de diálogo do filme), e principalmente com a exibição no filme que vemos dos filmes “feitos por Zissou” (que, não custa lembrar, é como o filme abre, em janela 1.33). O filme parece em tudo uma aposta nesta mesma maneira que os personagens têm de fazer os filmes “em casa”, de fazer os filmes com os seus amigos, com a sua “galera”. De fato, a própria postura de Anderson e sua gangue (e, aliás, não custa lembrar quem é seu parceiro original, muito antes de Hollywood descobrir os dois: Owen Wilson – que foi achar uma outra “galera” para fazer cinema também, com Ben Stiller, Will Ferrell, Vince Vaughn etc) é da afirmação de um cinema de turma num sentido quase pré-adolescente mesmo: impossível não imaginar os tempos passados por esta galera na Itália, “brincando de fazer cinema” com a mesada que papai-Disney e mamãe-Buena Vista mandavam lá de Los Angeles.
Esta talvez seja uma das sensações mais recompensadoras que os filmes de Anderson, e este em especial, nos passam: a de que eles saíram de férias com o dinheiro dos pais, sem seguir regras nem limites, e que assistimos ao produto final deste “grande golpe”. Que consegue escapar da perigosa armadilha do auto-centrismo por conseguir compartilhar conosco o amor absurdo de todos os envolvidos – tanto pelo cinema, como pelo seu próprio ato de rebeldia; e desta forma toda errada, pela vida em si.
FICHA TÉCNICA:
A Vida Marinha com Steve Zissou - The Life Aquatic with Steve Zissou
EUA, 2004 Comédia - 118 min
Direção: Wes Anderson
Roteiro: Wes Anderson e Noah Baumbach
Elenco: Bill Murray, Owen Wilson, Cate Blanchett, Anjelica Huston, Willem Dafoe, Jeff Goldblum, Michael Gambon, Noah Taylor, Burd Cort, Seu Jorge, Robyn Cohen, Waris Ahluwalia, Niels Koizumi, Pawel Wdowczak, Seymour Cassel, Isabella Blow
Buenas,
Cadu